domingo, 15 de junho de 2014

Domingo Maldito - na revolução comportamental inglesa


Famoso e importante por seus filmes ousados e independentes, o diretor John Schlesinger usou seus filmes como uma plataforma para a exposição de um mundo à parte ao tradicionalmente mostrado no cinema inglês. Com grande influência da New Wave britânica, Schlesinger transportou em seu trabalho elementos da contra cultura inglesa, aliados a figuras joviais e referências sexuais e comportamentais que remetiam a realidade de seu país no momento histórico pelo qual passava. Apesar de ser mais conhecido por Perdidos na noite, a trágica narrativa de dois marginalizados vagando sem esperança pelas ruas sujas de NY, que é um filme que se passa nos EUA e tem muitos traços presentes da cultura (e contra cultura) americana, sua importância é mais expressiva para a Inglaterra. Com Darling (1965), ousou ao trazer uma protagonista extremamente atípica para sua época. No entanto, foi com Domingo Maldito que o diretor trabalhou em seu filme mais adulto, sério, comprometido e, ao mesmo tempo, simples.

Domingo Maldito (Sunday bloody Sunday, 1971) retrata um triângulo amoroso muito pouco usual: a relação conjunta entre Alex (Glenda Jackson), Bob (Murray Head) e Daniel (Peter Finch). O ponto é que Alex e Daniel mantêm, ao mesmo tempo, um relacionamento amoroso duradouro com Bob, sem que ambos tenham nenhum tipo de contato. Não, não é um ménage, cada um deles mantêm sua própria relação com Bob simultaneamente, sendo que um sabe da existência do outro e nada faz para interferir, mantendo um relacionamento aberto com Bob baseado em confiança, respeito e completa abertura e permissão para infidelidade de ambos os lados. Uma proposta moderna até para os dias de hoje, Domingo Maldito chocou a sociedade inglesa e mundial em 1971 ao propor tamanha autonomia sexual para as suas personagens. Na verdade, este tipo de comportamento já era muito presente dentro da sociedade, mas em tempos em que a modernidade comportamental trazida pelos manifestos revolucionários dos anos 60 vivia aliada ao conservadorismo dos costumes e valores clássicos e antiquados da Terra da Rainha, tal fatia da sociedade não tinha representatividade em termos de cultura de massa e nem havia sido retratada de forma tão real.

Os elementos de choque entre estas duas vertentes são todas marcantes em Domingo Maldito, e Schlesinger abusa da contemporaneidade para ambientar sua história. Apesar dos mais de 40 anos, o filme ainda continua inovador por sua temática ousada e pode ser visto como um grande elemento de estudo de uma época e de uma sociedade. A correta ambientação nos traz tanto pessoas modernas quanto antiquadas e ainda nos fala sobre a maior crise econômica do país após a Segunda Guerra Mundial, associada à inconstância trazida por uma grande onda de desempregos que assolou o país.

Focando mais uma vez no trio protagonista, a relação aberta de aceitação mútua entre ambas as partes parece benéfica a todos, mas, no fim das contas, é mais um daqueles envolvimentos em que todos saem feridos. Tanto Alex quanto David desejam Bob na mesma medida, mas apenas podem dar-se como satisfeitos com o que ele pode oferecer para cada um deles. Apesar de infidelidades serem nitidamente permitidas, no maior estilo “somos livres para fazermos o que quisermos”, ciúmes disfarçados, insatisfação, saudades e melancolia também podem ser percebidos nas personagens (sobretudo com relação a Alex, a mais amarga de todos). Por mais que lhes sejam permitidos manterem outras relações amorosas, é nítido que Alex e David realmente estão apaixonados por Bob. Este, no entanto, é o único que realmente segue à risca esse preceito e até me parece consideravelmente egoísta. Conhecendo e entendendo os sentimentos de ambos, ele não mostra problemas mesmo causando tal desconforto para seus dois amantes, que também não são capazes de dar um fim ao impasse pelo medo de perdê-lo – apesar desta leve animosidade, o naturalismo do filme não faz com que esse impasse chegue a ser um atrito hora alguma. A situação só começa a transformar-se positivamente quando ambos, Alex e David, percebem a essência livre e descompromissada de Bob, cuja maior ambição é partir para os EUA (indiretamente abandonando-os), onde pode desenvolver-se melhor como artista, e assim são capazes de dar melhor continuidade a suas vidas.

As características das personagens não são todas reveladas de cara. Num período de pouco mais de uma semana (com episódios marcantes aos Domingos – este filme não mantém nenhuma relação com a música homônima de U2 nem com a história real a qual esta se refere), vamos conhecendo pedaços das personagens que nos fazem compreender melhor suas atitudes e sua personalidade. Alex, a minha favorita, por exemplo, revela-se uma mulher emocionalmente frágil e insatisfeita, tendo saído recentemente de um divórcio ao qual o filme, sabiamente, não faz grande exposição. David, por sua vez, é um médico bem sucedido e respeitado, mas cuja opção sexual não é revelada entre seus pacientes e familiares e cuja sexualidade envolve insinuações diretas de encontros com figuras excêntricas. Falando nisso, em nenhum momento durante esta postagem eu falei sobre a relação homossexual entre David e Bob. Na verdade, foi só uma maneira tanto de guardar a parte mais importante do filme para o final quanto de mostrar a maneira como ele a retrata. Domingo Maldito inovou muito em seu tratamento aos personagens homossexuais. Homossexual assumido, Schlesinger sempre os tratou em seus filmes, seja de forma discreta, mas insinuante, em Darling como em meio aos tabus da prostituição masculina em Perdidos na noite. Em Domingo Maldito, classe e elegância não lhe faltam ao relatar tal envolvimento com grande naturalidade. O fato de se tratar de um relacionamento homossexual não altera em absolutamente nada o transcorrer do enredo e as cenas de intimidade entre David e Bob são mostradas com a mesma simplicidade e carinho que as de Alex e Bob. Não é feito qualquer alarde pelo fato de haver homossexualidade na trama e a descoberta deste teor – um beijo apaixonado entre os dois – surge tão organicamente quanto um aperto de mãos.

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Lucas Moura

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