quinta-feira, 28 de março de 2013

O Apanhador no Campo de Centeio - Quando um corpo encontra um corpo

Trago para vocês hoje um clássico da literatura mundial, escrito pelo americano J. D. Salinger, em 1951: O Apanhador no Campo de Centeio. Não é sem méritos a presença desse romance nas listas dos 100 Melhores Livros da Modern Libray e do Times. Ele é mais um daqueles livros cuja qualidade está muito menos no enredo em si do que na forma como foi narrado, pois se formos ver ao pé a letra, é apenas um livro sobre um adolescente que é o arquétipo do jovem em crise. E com essa intenção já nasceram vários fiascos da literatura infanto-juvenil dos quais prefiro não citar nomes. Mas não o Apanhador no Campo de Centeio, ao qual nem classificaria como infanto-juvenil, afinal, é um livro muito arguto e conspícuo, para ser lido em qualquer idade.
O livro conta a história de Holden Caulfield, quando ele tinha 16 anos. Vindo de uma família abastada, o enredo se passa no curto espaço de tempo entre sua expulsão de mais um desses internatos de luxo e a sua volta dele para casa. Uma vez que ele mesmo é o narrador, contando a história um ano depois, acompanharemos sua idiossincrasia, todos seus pensamentos, todas suas opiniões, todo seu modo peculiar de ver a vida.
E Holden é realmente muito interessante. Parafraseando Sal Paradise em On The Road, ele é uma dessas pessoas loucas; loucas para viver, loucas para falar, loucas para serem salvas, que desejam tudo ao mesmo tempo, que bocejam diante do comum e ardem. É um jovem melindroso, atônito e confuso. Não é difícil, contudo, entender a origem de sua angústia, da sua depressão. Na verdade ele se sentia muito só. Nos colégios pelos quais passou apenas conheceu os mesmos tipos de pessoas esnobes, sem caráter, sem conteúdo.
“Você devia ir a um colégio de rapazes, só para ver. Experimenta só. Estão entupidos de cretinos, e você só faz estudar bastante para poder um dia comprar uma droga de um cadilaque, e você é obrigado a fingir que fica chateado se o time de futebol perder, e só faz falar de garotas e bebida e sexo o dia inteiro, e todo mundo forma uns grupinhos nojentos.”
Ao longo do livro, perdem-se as contas de quantas vezes ele teve vontade de telefonar para alguém, ou de quantos desconhecidos ele convidou para tomar um drink só para ter com quem conversar, mesmo pessoas que ele não gostava muito. Em outro momento, Holden chegou a expressar-se sobre isso de maneira mais confusa, porém fica patente sua inadequação:
“Você alguma vez na sua vida já se sentiu cheio de tudo? Quer dizer, alguma vez na vida já ficou com medo de que tudo vai dar errado, a menos que você faça alguma coisa? Bem, eu odeio a escola. Poxa, como detesto o troço. E não é só isso. É tudo. Detesto viver em Nova York e tudo. Táxis, ônibus da Avenida Madison, com os motoristas gritando sempre para a gente sair pela porta de trás, e ser apresentado a uns cretinos que chamam os Lunts de anjos, e subir e descer em elevadores quando a gente só quer sair, e os sujeitos ajustando as roupas da gente nas lojas. (...) Os carros, por exemplo. A maioria das pessoas são todas malucas por carros. Ficam preocupadas com um arranhãozinho neles, e estão sempre falando quantos quilômetros fazem com um litro de gasolina e, mal acabam de comprar um carro novo estão pensando em trocar por outro mais novo ainda.”
Aliás, sua relação com outras pessoas é muito interessante. Ele é capaz de ir oscilar entre gostar muito e gostar pouco de alguém em um minuto, de uma maneira muito sincera. Ele foi capaz de propor casamento para uma garota de quem nem gostava, convidá-la, em seguida, para fugir com ele para outra cidade e levar uma vida no campo, porque, naquele momento, era seu real desejo e, no minuto seguinte, após sua recusa, foi capaz de dizer a ela que ela era “um pé no saco”, porque naquele momento era o que realmente pensava. O auge dessa relação ambígua com os outros personagens do livro é no final, quando diz:
“A gente nunca devia contar nada a ninguém. Mal acaba de contar, a gente começa a sentir saudade de todo mundo.”
Além da solidão, sua depressão fundamenta-se também na falta de perspectiva de sua vida.
“Tem gente que passa dias procurando alguma coisa que perdeu. Eu acho que nunca tive nada que me importaria muito de perder.”
Um de seus professores, Antonioli, observou perfeitamente o problema e o admoestou:
“Acho que um desses dias você vai ter que decidir para onde quer ir. E vai ter que começar a ir para lá. Tenho a impressão de que você está caminhando para alguma espécie de queda... uma queda tremenda. O homem que cai não consegue nem mesmo ouvir ou sentir o baque do seu corpo no fundo. Apenas cai e cai. A coisa toda se aplica aos homens que, num momento ou outro de suas vidas, procuram alguma coisa que seu próprio meio não lhes poderia proporcionar. Por isso abandonam a busca antes mesmo de começa-la de verdade.”
Isso também fica claro quando sua irmã Phoebe, de dez anos, pergunta-o sobre o que gostaria de fazer da vida, e ele responde que se lembra do poema de Robert Burns, Coming Through The Rye, de onde, aliás, vem o título da obra, e diz ter vontade de agarrar crianças prestes a cair no abismo (tentativa de preservar suas inocências, talvez?). 
Poderia falar também dos outros personagens nesse livro, no entanto, eles são apenas adjuvantes que vão nos ajudar a entender melhor o nosso herói. Ajudam-nos a entender porque reprovou em quase todas as matérias e foi expulso pela quarta vez de um colégio; porque saiu antes da data prevista para se refugiar em um hotel barato; porque vagou por bares, pelas ruas; porque saiu do tal hotel e foi para sua própria casa às escondidas visitar sua irmã mais nova, partindo em seguida para a casa de um professor; porque saiu de lá às pressas e dormiu em uma estação de metrô; porque teve um colapso; porque retornou a casa.
É um livro realmente tocante, de muita sensibilidade, muito visceral, simplesmente não se lê sem se despertar uma reflexão. Devo alertar, todavia, para o estado de espírito adequado antes de ler tal obra. Explico. Quando o li, o fiz pensado em um grande clássico da literatura, de um autor com um nome de peso, em um livro eminente, por isso me frustrei um pouco. E esse é o erro. Deve-se lê-lo com a mente aberta. Incomodou-me a linguagem demasiadamente informal, com muitas gírias anacrônicas, mas oras, o narrador é um adolescente! Deve-se relevar isso e perceber a real intenção por trás de tal linguagem. Foi a primeira obra sobre a adolescência e ainda sob a forma de uma crônica tão acurada. Essa fase era ignorada até então, vista apenas como uma transição para idade adulta, e foi fidedignamente descrita não só por retratar a maneira de pensar e agir como por retratar a maneira de falar também. Nem preciso dizer o seu sucesso estrondoso na época fundamenta-se na identificação em massa de todos os jovens. E não tem como não se ver no nosso protagonista, em maior ou menor grau. O que posso dizer é que se nas palavras de Holden um bom livro é aquele que quando a gente acaba de ler fica querendo ser um grande amigo do autor, para se poder telefonar para ele toda vez que tiver vontade. O Apanhador No Campo De Centeio é obra para te deixar com vontade convidar Salinger para um café.

Curiosidades:
O assassino de John Lennon, Mark David Chapman, carregava este livro consigo no dia em que cometeu o crime. Segundo testemunho do próprio Chapman, estava lendo o "Apanhador no Campo de Centeios", minutos antes de tentar o suicídio e da obra teria tirado inspiração para matar John.
O atirador que tentou matar Ronald Reagan em 30 de abril de 1981, afirmou a mesma coisa, ou seja, que teria tirado do livro a inspiração para matar o presidente Reagan. Não obstante, o assassino de Rebecca Schaeffer, Roberto John Bardo, carregava consigo o livro quando a matou.
Depois de vender 15 milhões de exemplares e virar uma celebridade mundial, Salinger - notoriamente tímido e agressivamente modesto em relação a seu talento - primeiro isolou-se em uma casa no topo de uma montanha, em uma cidadezinha de mil habitantes. Depois foi diminuindo o ritmo de produção e afinal cortou qualquer contato com a mídia. Não concede entrevistas, não se deixa fotografar e nunca permitiu que nenhum dos seus livros fosse adaptado para o cinema (assim como o próprio Holden Caulfield, Salinger odeia cinema).

Leia também: A montanha mágica
  
Marcelle Vieira Freire

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