domingo, 31 de março de 2013

2001: uma Odisseia no Espaço - a vida, o universo e tudo mais

É inesquecível. Nos três minutos iniciais se ouve apenas um leve zumbido, que junto à tela toda escura criam expectativa, e são interrompidos pelo início de Assim falava Zaratustra de Richard Strauss, enquanto aparecem alinhados a Lua, a Terra e por fim o Sol - quando, num "ápice" da música, surge o título instigante.
2001, uma odisseia no espaço (2001: a space odissey, 1968) foi idealizado por Stanley Kubrick para ser mais que um filme de ficção científica, e junto ao escritor e brilhante cientista Arthur C. Clarke, promoveu uma verdadeira divisão de águas no gênero. A história é baseada no conto A Sentinela, de Clarke, que foi adaptado pelos dois, que trabalharam juntos e num certo ponto se separaram; Kubrick foi dirigir o filme e Clarke foi terminar de transformar o conto em livro, que foi lançado pouco antes do filme. Um tipo de parceria que possivelmente nunca mais foi repetido, mas que aqui deu muito certo.
A primeira parte, "A Aurora do homem", também conhecida como a cena dos macacos que dura um ano, mostra um grupo de primatas humanoides num cenário árido e hostil, sendo predados por feras e se alimentando de animais em decomposição. Num certo ponto, outro grupo de primatas os expulsa da poça d'água às margens da qual eles vivem, e eles têm de se refugiar em cavernas. O aparecimento de um monólito negro parece ser a chave para um salto evolucionário que transforma os primatas coletores e necrófagos em caçadores e assassinos a partir da descoberta de como usar um osso como ferramenta e arma. No fim da primeira parte, um dos macacos joga um osso pra cima, num dos melhores cortes de cena que já vi, e  o osso se transforma num satélite.
Entre aprendermos a caçar e matar e viajarmos tranquilamente pelo espaço, há apenas um piscar de olhos. Ou seja, toda a história humana se resume a matar e destruir?
Abrindo a segunda parte, satélites e naves ao redor da Terra ao som de Danúbio Azul, de Johann Strauss - sim, a valsa das debutantes. Se essa música já é grudenta, imagine pra quem viu o filme. Isso porque os satélites parecem valsar ao som da música, e Kubrick tinha o dom de tornar algumas músicas mais inesquecíveis do que já são, vide a 9ª Sinfonia. Enfim, estamos agora numa estação espacial internacional, tripulada por cientistas de varias nacionalidades (com direito a referências à Guerra Fria), e que manda para a Lua uma missão para investigar um monólito negro descoberto em escavações, fonte de uma radiação que se dirige a Júpiter. O monólito é o mesmo encontrado pelos primatas milhões de anos atrás, e assim como na Terra pré-histórica, a cena lunar mostra o sol visto a partir dele, fazendo alusão a representações pagãs, e desencadeando fatos importantes na história.
Outro corte, dessa vez para a Missão Júpiter, dezoito meses depois. A nave Discovery One traz uma tripulação de cinco passageiros, sendo que três estão hibernando, e os outros dois , dr David Bowman e dr Frank Poole, que dividem o comando da missão com o computador HAL 9000, da família de supercomputadores mais eficiente que existe. Aí temos o fato mais interessante do filme: Hal, que é dotado de personalidade quase humana, se volta contra a tripulação e tenta matar todos - se ele consegue ou não, assista para descobrir. O que temos aqui é uma forte crítica ao avanço tecnológico: um computador que tem mais sentimentos que humanos (pois os astronautas aparecem sempre apáticos) e cuja incapacidade de falhar lhe permite subjugar o homem. A própria sigla HAL é referência à empresa IBM (H vem antes de I, A vem antes de B...), na época uma gigante sem rivais em seu ramo. Hal aparece como o Ciclope da Odisseia (sim, a "odisseia" do título remete à Odisseia de Homero), tão poderoso, tão invulnerável, e determinado a acabar com os humanos que estão em seu caminho; e da mesma forma que na história grega, é um obstáculo para a saga que o homem deve seguir.
Indo pra parte final... aí depende da imaginação de cada um, ou da pedância de cada um, ou da erva que cada um puxou. Kubrick lança mão do que havia de melhor em efeitos especiais, e o que não era bom o suficiente, ele cria melhor, para fazer o espectador viajar pelo espaço, nascimento de galáxias, canyons, até chegar num quarto com decoração Luis XV, em que a vida presente se confronta com a frágil e decadente vida da idade avançada e com a frágil e promissora vida fetal, no belíssimo desfecho em que aparece um feto humano, com olhinhos brilhantes enquanto contempla a Terra, representando a inocência da infância (e seria o feto, emvolto em seu círculo luminoso, um outro mundo admirando o nosso?) - confuso? É assim mesmo.
O próprio Arthur Clarke afirmou que se alguém assistir ao filme, e logo na primeira vez entendesse tudo, ele e Kubrick teriam falhado em sua missão. Em uma entrevista, o diretor afirmou que sua intenção foi criar uma experiência visual, para atingir o espectador  em seus níveis mais profundos de consciência, e dava toda liberdade de interpretação a quem assistir. O pior que é verdade. 2001 é muito mais ver e sentir que compreender. O filme é belíssimo visualmente do começo ao fim; a trilha sonora também é ótima e casa perfeitamente com cada momento. Certo que a subjetividade chega a parecer excessiva e há problemas na narrativa - aliás, há narrativa? A única certeza é que somos levados junto às viagens da cabeça de um diretor que não se preocupou em facilitar a vida de quem ia sentar pra ver seu filme e produziu uma obra autoral, no popular "tá gostando, beleza, se não tá, o filme é meu".
O fato é que 2001 comprova a frase de Orson Welles que diz que "o cinema não tem fronteiras nem limites, é um fluxo constante de sonho". Nas palavras de Isabela Boscov, "não existe filme capaz de mostrar melhor do que o cinema é capaz, de que a imaginação humana é capaz, do que a arte de um diretor realmente único é capaz". É complexo? É. Cansativo, confuso? Sem dúvidas. Mas o que 2001 fez vai além de inovações na ficção científica e atinge todo o cinema no que diz respeito ao que pode ser transmitido nas telonas, como os sentimentos primitivos da nossa pequenez diante do universo e do nosso desejo de descobrir o que há para dentro ou para fora de nossa existência. Através de toda a abstração do filme, a representação da rapsódia humana no universo.
Só pra terminar: indicado a quatro Oscar - direção, roteiro, direção de arte e efeitos especiais visuais, vencendo apenas na última (único Oscar de Kubrick) e atualmente na sexta posição da lista de melhores filmes da Sight and Sound.

Nota: 10

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Luís F. Passos

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