quarta-feira, 12 de setembro de 2012

A Metamorfose – Kafka à la carte.

É uma dádiva encontrar uma leitura que inspire a compulsão. A vontade mordaz de devorar o livro de uma só vez, não importando o sono ou outros obstáculos bem comuns aos leitores menos habituados, rejuvenesce a paixão pela literatura. Isso é um quanto relativo; pode depender do autor, do assunto ou até mesmo do tradutor (precisamos dar uma valorizada neles também!), mas no final da história o que conta mesmo é o gosto do freguês. Todavia, nesses anos de clientela, aprendi que Kafka é como um prato cheio que jamais vi alguém reclamar.
De antemão, para abrir o apetite dos iniciantes, eu sugiro Cartas ao Pai (1919) como prato de entrada, a fim de tornar a apreciação do prato principal uma experiência inigualável.
Pois bem, após o devido tira-gosto ser digerido – o que pode ser complicado, afinal este foi um prato muito técnico e denso –, seguimos ao prato especial da casa, o mais pedido, o mais estudado e o mais conhecido internacionalmente. A Metamorfose (1912) é servida bem quente aos seus interessados, portanto, recomendamos cautela àqueles que sorverem em grandes quantidades desta obra-prima.
Os ingredientes não são muitos; contém o Gregor Samsa, a caricatura do próprio autor, seu núcleo familiar (pai, mãe e irmã) e ainda relacionamentos distantes (o chefe, a empregada e os locatários). Vão todos sendo cozidos no mesmo espaço: a casa dos Samsas, que por sua vez é dividida entre a sala comunal, a cozinha e o quarto de Gregor.
São componentes pouco interessantes à primeira vista, porém o verdadeiro sabor encontra-se no modo de preparo da receita. Gregor Samsa esquenta o enredo ao se tornar uma forma de inseto – fonte de mistério até hoje e sempre – inexplicavelmente. Mesmo ao acordar deformado, ele ainda insiste em trabalhar, não se dando conta de seu estado. Adicionamos o seu obtuso chefe persistindo em saber das condições do antes exemplar funcionário, intentando a punição do seu funcionário. Vamos direto ao fogo brando com o susto geral ao encararem o metamorfoseado protagonista! Deste ponto em diante as relações consanguíneas ditarão a temperatura.
Talvez a beleza da iguaria seja o gosto tão vago e, no entanto, especial. São diversas as interpretações no legado kafkiano, e isso é resultado de um artista tão íntimo e ao mesmo tempo tão permutável. Quem experimenta acaba por se identificar, reconhecendo no seu histórico a dramatização da família ou a debilitação pessoal. E não é lá necessário que teu pai tenha sido repressor, tua irmã agitasse a tua sexualidade ou tua mãe vivesse sem iniciativas, tu não estás impassível de seres exposto, sensibilizado.
Quem tem coração, ao acabar o livro, engole a seco.

Guilherme Patterson

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